Ácido Ameno

Saturday, March 18, 2006

A CONVENÇÃO DO CORPO

Um dia, traído pelo corpo
que não obedeceu ao cérebro
e não moldou-se a seu comando,
resolvi discutir a relação...


E eu, que já acreditei em outra coisa,
Hoje sei
que não existe outro corpo,
além do meu...
Mas hoje
é dado o momento da acusação.
Questionei o corpo como um todo,
mas ninguém respondeu...

Atitude comum a todo corpo...
Questione ao grupo
e o todo, contraditório, se cala,
atávico
como um grupo de colegiais medrosos.
Até que cada membro resolve,
isoladamente,
se pronunciar:



“Sou todo sentimentos”,
-interveio o coração-
“e talvez por isso
esse teu corpo ressentido
não precisa ser tão bonito”
-constata-
“Pois, sendo assim mesmo como é,
se me resguarda e me aceita,
eu o aceito como é”,
conclui, dócil,
como bem cabe a ser tal órgão.


“Malditos!”
-retumba uma voz muda-
“Afinal...
quem é que manda nessa merda?”
questiona o neurônio, irritado,
em um momento de sinceridade.


E eis então que os olhos,
atentos vigias,
tensos como guardas,
percebem o medo em pernas trêmulas.
E a boca, sisuda e implacável,
inicia a inquisição:
“Ei, vocês....
É, vocês mesmas, aí embaixo...
Por qual motivo
não se esforçam
e não esticam um pouco mais?”
-provoca-
“Acham que é bom assim,
para quem está aqui em cima?
Não é não...
Perguntem ao olho,
que outro dia mesmo
me relatou
que assistiu a um show de música
encoberto
por um mar de nucas
e costas de outros povos,
todos mais altos,
como os nórdicos”.
Frente ao silêncio sucedâneo
o sagaz neurônio solitário
percebeu
o quão covardes são as pernas.
Talvez por isso,
desde os primórdios,
aprenderam sempre
a andar em duplas.



“Ei, mas e os braços,
que também vivem em duplas?”,
retrucou, ofendida,
a panturrilha.
“Nós assim andamos
apenas
para ampliar a própria força
e ser mais útil ao corpo todo,
como também o fazem
os olhos e as narinas”,
-devolveu o braço,
como um gancho de direita-
“Não como vocês,
que trabalham em duplas
para correr mais
na hora do medo do perigo”, conclui.
“Mas e os rins, os alvéolos...
-retruca a coxa direita, cheia de si-
“Não força irmã...”
-caçoa o neurônio-
“Todos sabem que os alvéolos
constituem um só pulmão”,
responde.

“Mas pelo menos
não passo a imagem
de falsas atribuições.
Veja o coração, por exemplo,
o que bombeia é só sangue
e não sentimentos, como diz...”
-infere a perna,
ferida em sua auto-estima...
“É verdade”, retruca o neurônio,
sentindo-se valorizado.


“Eu, por minha vez,
muitas vezes
sinto uma fúria
tão insana e louca
que gostaria de arrancar,
à força,
os intestinos pela garganta”.
intervém a mão direita,
com o punho fechado,
em sinal de revolta.
“Calma, meu caro,
não há motivo para tanto...”
-intercede o neurônio,
como bom mediador.


“Vamos, faça isso...
e vamos ver até onde vai...”
-responde o intestino,
retorcendo algumas palavras.
“Parem com isso.
Precisamos nos unir
para ser valorizados”,
-intercedeu o peito,
cheio de si-
“Afinal...
somente unidos
cuidaremos
das partes mais remotas,
inanimadas e frágeis do corpo,
como as sobrancelhas,
os pêlos e as unhas”
-conclui
o tão menosprezado,
mas tão importante membro,
protetor maior do coração.


Fosse esse
um corpo feminino
a ele caberia, ainda,
resguardar os seios,
simbologia maior
da força feminina
que, não por acaso,
representam ao homem
toda a essência da vida.
O alimento e o desejo.
O leite e o gozo.
Mas, neste caso,
em um corpo de homem,
é apenas
um guarda,
atento
ao funcionamento da máquina e,
para alguns,
mais vaidosos,
um atrativo de sexo,
ativando serotonina
quando bem esculpido.


“Aaaahhh, e esses dentes,
que não param de ranger...
Por que não os arrancamos,
um de cada vez,
com alicates bem forjados?”
-intervem a mão direita,
sensível e delicada,
como um psicopata enfurecido.

“Você diz isso
porque não é você
que receberia os alimentos,
ainda inteiros”
-retruca
uma comissão especial,
formada pelos órgãos digestivos.


“E essas estranhas sensações,
de sentimentos e desejos...
Para que são úteis a esse corpo?
O que constroem ou auxiliam?
A meu ver
conseguem apenas
alimentar discórdias
e gerar insatisfação
entre os membros desse corpo”
-ressalta a mão, sempre polêmica-
“Deixem-me
arrancar os olhos
e o problema se resolve”,
conclui.

“Você é tão patética,
que chega a fazer graça...”,
responde o olho, sempre atento.
“Sem minha ajuda
seria incapaz
até mesmo
de encontrar um instrumento
para cortar as próprias unhas”,
-continua-
“Além do mais,
para evitar tais sensações,
também seria necessário
eliminar o cérebro,
os ouvidos e as narinas.
E acredito, sinceramente,
que ninguém aqui
está disposto
a transformar
o corpo em um vegetal”,
conclui.




E a noite
que resguarda o descanso
deste corpo ressentido
cai sobre os tetos,
pesada e negra
como um cobertor de chumbo opaco.
Nessa hora
alguns membros
se contorcem
e sentem a dor
da solidão e cortes novos.

“Arranquem...Arranquem...
Esse....
Aquele...”
Grita, alucinada, a mão direita.
debatendo-se
na cama estreita.
E os lábios
duros
e secos como pedras,
pela ausência de carícias,
balbuciam, sonolentos,
alguma coisa....
algum nome
ou algum desejo.
E a alma,
antes dura e fria
como a poesia concreta
dos prédios paulistanos,
aos poucos,
amaciada e adormecida
pelo som da música,
coitada...
procurou ser tão refinada...
Ficou tão fina
que um dia
desapareceu...



No meio da madrugada,
ridícula e inutilmente
se debate contra o peito
a mão direita,
ensandecida e patética
como um velho esclerosado
e sua bengala.
Repete suas pancadas
como pêndulo vivo de um relógio.
Até que uma força a interrompe
pela intervenção
da mão esquerda,
mais sensível e contida,
dizem...
pela visível proximidade
do coração que,
por sua vez,
lembra
aos outros órgãos
que, às vezes,
quando o corpo todo se contorce
é porque
necessita de carinhos,
da proximidade de outros corpos
e do toque de outras mãos.



E quando diz isso
o corpo todo se cala,
exceto a mão direita que,
solitária,
resmunga que é preciso
arrancar o insolente
peito afora.
Os outros membros todos
se entreolham e, mudos,
reconhecem, enfim,
que, às vezes,
a razão está, realmente,
em quando
fala mais alto
o coração.

Friday, March 03, 2006

NEGREDO

Quando se fala em alquimia ou alquimistas a primeira idéia que vem em mente está relacionada ao mito do rei Midas e a transformação de matéria em ouro pelo toque. Quando não (o que é pior ainda), relaciona-se ao famigerado livro do Paulo Coelho que, a meu ver, realmente possui o dom do Midas e do alquimista, no sentido de transformar palavras em ouro, reconhecido como dinheiro mesmo. Mas, de acordo com seu fundador, um cara chamado Hermes Trismegistus (não sei mais nada sobre ele. Então, por favor, não pergunta, porra), a alquimia parte do princípio da mutação - desconstrução (solver) e reconstrução da matéria (coagular).. A isto também é possível chamar de mágica, não aquela, de serrar pessoas ao meio ou fazer desaparecer um elefante. Mas a da mutação... Onde quero chegar? Em como isso tudo pode ser aplicado ao dia-a-dia banal de cada um...Durante o processo de desconstrução há, nesse conceito de alquimia, um período chamado "negredo", que representa um momento de putrefação da matéria, escuridão, desespero e incerteza. Esse conceito pode ser relacionado aos momentos difíceis da vida, quando tudo parece perdido e sem esperança. Na Filosofia, tem a ver com o conceito de "Angst", que nada mais é que a representação do sentido da angústia. Também é o nome de alguns discos, como o da banda Lacrimosa (a goticaiada conhece!!!!) e do tecladista alemão Klaus Schulze. As vezes todos se sentem nesta fase da alquimia... Sem querer parecer otimista (credo!!!) ou piegas, mas certamente, nessas horas, é importante lembrar que o momento é essencial para dar início ao processo de coagulação ou reconstrução. Portanto, é essencial para transformar uma matéria em outra mais nobre. A transformação do "algo qualquer" em ouro. Mas, cá entre nós, que isso tudo é foda, ôôôôôô se é....