Ácido Ameno

Monday, December 03, 2007

MUHAMMAD ALI

Nietzsche, aquele bigodudo maldito, que tanto preconizou a criação do super-homem quanto os fundamentos do pensamento fascista, defendia, entre outras coisas cruelmente verdadeiras, o conceito do altruísmo egoísta.Quantas madrugadas eu e meu amigo Dandi não passamos, entre uma cerva (eu) e uma coca (ele) e outra, comentando sobre a crueldade do bigodão ao nos esfregar a verdade tão dolorosamente na cara? Toda ação gera uma reação. Nada se perde no ar. É um princípio inevitável, seja consciente ou inconsciente. Em todo bem há uma ponta de egoísmo. De auto-
satisfação. Quando fazemos algo bom, fazemos porque queremos e não somente pelo bem, puro e simples. E é assim mesmo que deve ser. Caso contrário, contra a vontade, seria ainda pior.
Mas, afinal, por qual motivo estou escrevendo isso? Apenas para justificar uma experiência muito particular, ocorrida recentemente. Não... não esconderei nada, nem mesmo os detalhes mais sórdidos. Na solitária madrugada de uma sexta-feira, neurótico, resolvi trocar a dor da ausência de algo ou alguém que preencha
o vazio de cada dia e madruga pela imprevisível boemia noturna, no melhor estilo "Nickcaveano".
Peguei um táxi até a República (o bundão aqui insiste em um medo idiota de dirigir) e subi a Augusta, buscando algo que me persegue, ou seja, perdido, dando voltas em torno de mim mesmo, como aqueles cachorros que perdem tempo e energia tentando morder o próprio rabo.
Pois bem... após algum "smack on my bitch up" - êêêê, mania de música em tudo - não tendo como base exatamente a música, mas o clipe do Prodigy, já voltando para casa, sozinho, dois moleques de rua me param, pedindo dinheiro. Instintivamente, na mais pura reação tipicamente classe média do "tó aí", saco umas moedas do bolso e dou para um deles. Não satisfeito, o outro lança: "Tio... paga um albergue pra gente. É
logo em frente, do lado do Love Story". "CARALHO..." - pensei, de forma peculiarmente singela... - depois de perder tempo e dinheiro com os fugazes prazeres da carne (não....não... no rodízio eu já tinha ido com o Dande,
na quinta-feira), como eu poderia negar dez contos para dois moleques poderem dormir de forma decente em uma cama?
"Beleza... Vamo nessa!!!!!". Papo vai.. papo vem... os moleques me contam que são de Uberaba, em Minas Gerais, e têm nove irmãos, e querem voltar para lá, mas não conseguem convencer o pai a aceitá-los de volta, e por isso vivem na rua.
Então, um dos moleques me solta: "Tio... se outro dia eu te encontro de novo na rua, o senhor me leva em um brechó e me compra uma roupa?". "CARALHO..."... é aí que o moleque me quebra uma perna!!!! E chego a sentir vergonha do que sou e das
minhas pequenas dores inúteis, tão ressentidas.
Nem tenho tempo de me recuperar do primeiro baque e o moleque Muhammad Ali solta outro cruzado.. Agora de direita. "Tio.. um dia, o senhor ainda vai estar na rua e eu vou te parar e vou fazer você lembrar de mim, porque nunca mais vou esquecer tua cara". E lá vai minha outra perna.... sem dó.Não tem jeito... vai ser lona!!! E então, logo depois, um pouco mais adiante, já em frente ao Love Story, após
cumprimentar os moleques, como não poderia deixar de ser, recebo o golpe final. "Tio... essa noite eu vou sonhar com você! Te amo!!".
Ouvir isso de uma criança? Nocaute. Sem comentários.
E o cara que, minutos depois, entra na minha casa, com certeza não é mais o mesmo que havia saido. E me pergunto: "Afinal, numa situação dessas... quem faz mais bem para quem?"
Aquele maldito bigodudo, que inventou o super-homem e preconizou o fascismo, sabia mesmo das coisas...